NOSSAS SÉRIES
Exclusão e Abraço
Viver em uma realidade tensa de colisões identitárias é desafiador; como cristãos, precisamos buscar a reconciliação com Deus e com nosso próximo, incluindo os “inimigos”, por meio do amor ao próximo que excede o entendimento – Miroslav Volf sugere o abraço como resposta à exclusão.
A não-violência é cada vez menos popular. Num mundo caótico e bélico, reagir a violência com mais violência é o discurso reinante. Quer sua reação seja 100% justificada, quer não, reagir na mesma medida do mal sofrido é quase uma obrigação. Nossas ações de exclusão geram reações de exclusão. Violência gera mais violência. Dentro das nossas noções parciais de justiça, ela nunca existirá de maneira realmente justa e definitiva. Como coloca Miroslav Volf: “A cruz de Cristo nos deveria ensinar que a única alternativa ã violência é o amor que doa a si mesmo, a disposição de absorver a violência para abraçar o outro sabendo que a verdade e a justiça serão mantidas por Deus. (…) Somente aqueles que estão dispostos a abraçar os desonestos e injustos, como Cristo fez na cruz, estarão habilitados a empregar a razão e o discurso como instrumentos de paz e não de violência.”
Texto Base: 2 Coríntios 5:14-21.
Durante o julgamento corrupto que os líderes religiosos armaram para Jesus, Pilatos conversa com o Mestre e faz uma pergunta profunda: “O que é verdade?”. A pergunta, que fica sem resposta naquele momento, é a que permanece. Em sua vida e em seus atos, Jesus demonstrou em todo o momento que a verdade é o amor máximo a vida e o engano o desprezo pela vida, mesmo que em favor da lei. Jesus não morre por um conceito abstrato e teórico da verdade. Jesus aceita morrer por pessoas, inclusive por aquelas que o entregaram para morrer injustamente. Uma comunidade que é abraçada por Jesus, é uma comunidade que vai buscar viver essa verdade: toda vida é válida e merece ser abraçada.
Texto Base: João 18-19
Abraçamos a quem amamos ou queremos bem. Abraçamos quem está perto e se parece conosco. Abraçamos, paternalmente, como forma de carinho e acolhimento, mas também como forma de uma verta superioridade. Nesse sentido, precisamos pensar que existem os “inabraçáveis”. Há alguns que não querem ser abraçados e assim devem ser deixados. Não devemos coagir, manipular ou violentamente puxarmos para o abraço. O reino de Deus é o reino da liberdade de escolha e ao oferecermos nosso abraço, precisamos estar prontos para esse abraço ser rejeitado, mesmo que parcialmente, ou momentaneamente. Além dos que não querem, há os que não conseguimos estabelecer um laço suficientemente profundo ou amoroso a ponto de querermos abraçar. Ainda assim, preciso entender que, em uma comunidade diversa, talvez outros abracem os que não consigo abraçar. E essa é uma das belezas da diversidade dentro de uma comunidade: talvez, individualmente, não abrace a todos, mas todos serão abraçados por alguém. Por fim, há coisas em cada um de nós que são tão singulares e específicas que, talvez, ninguém queira abraçar. Ser “inabraçavel” em algum ponto ou em algum momento não deveria impedir o abraço, mas pode adiá-lo. É preciso viver a liberdade do reino de Deus para realmente entender o abraço e o não abraço como processo.
Texto base: João 3 e 4
Maria ungiu os pés de Jesus com nardo puro e foi recriminada por isso. Quanto esforço ela despendeu para comprar aquele unguento? Como mulher, ela foi discriminada naquele momento por homens que a julgaram preconceituosamente. Ainda por ser mulher, seu papel na história cristã foi rotulado e sempre é lembrado com descrições caricaturadas. Assim, ela continua sendo discriminada através da história. Como naquele contexto, nós não temos condições de calcular o custo da adoração das pessoas. Não sabemos o preço que elas pagam para adorar a Deus. Em outra situação, ao responder o pedido da mulher siro-fenícia, depois da insistência dela, Jesus abraçou identidades que se interseccionavam em uma pessoa do gênero feminino, de nacionalidade diferente e não-judia. Depois do encontro com ela, o ministério de Jesus se expandiu para além das fronteiras étnicas e geográficas. Mais de 2000 anos depois, muito ainda precisa ser feito para eliminar a exclusão da mulher e de outros grupos discriminados. Grupos que ainda são distanciados dos papeis decisivos em nossas comunidades de fé. Precisamos orar mais, estudar mais e fazer mais para que o abraço e a inclusão de fato aconteçam para todos e em todos os contextos.
Texto base: João 12:1-11
A parábola do filho pródigo, uma das mais emblemáticas contadas por Jesus, trabalha de as diversas dinâmicas da exclusão e do abraço de maneira didática. Os três personagens são apresentados na lógica de suas relações: o pai e os filhos, os irmãos. Apesar de tendermos a enfocar no filho que volta, o centro da parábola é o relacionamento do pai com os dois filhos. Ao passo que pai fortemente declara o seu amor como base autoritativa para o seu relacionamento com os dois filhos e sempre procura abraçá-los, o relacionamento dos irmãos entre si é estremecido. Mesmo com uma visão deturpada de si mesmos e do relacionamento com o pai, se excluindo do pai e de si mesmos, ambos filhos são acolhidos nos mesmos braços amorosos do pai.
Texto base: Lucas 15:11-32
Há muito o que entender sobre os mecanismos humanos de excluir. Entretanto, a radicalidade do evangelho, já presente no Antigo Testamento, é que aquele que mata o irmão, Cain, ainda recebe de Deus uma chance. Essa chance não implica perdão automático de seu pecado monstruoso, mas a possibilidade de arrependimento e mudança. O abraço de Cristo na cruz alcança até os Cains, mas para isso nós, os Cains, precisamos estar dispostos a receber esse abraço e sermos transformados de praticantes da violência em recebedores da violência em nome do evangelho. Sim, porque ao recebermos e aceitarmos o abraço de Cristo, a radicalidade do seu evangelho nos tornará, como em Suas palavras, merecedores das Suas dores. Em Cristo, já não serei eu, Cain, quem vivo, mas Ele, Cristo, viverá em mim.
Texto base: Gálatas 2:19-20
De uma família específica, a de Abraão, todas as famílias da Terra são envolvidas na benção do Messias. O particular se torna agente da universalidade. Essa sobreposição constante na Bíblia entre o individual e o coletivo, ou até melhor, entra a parte e o todo, é vital na mensagem de Cristo. Na verdade, pertencer ao corpo de Cristo é, ao mesmo tempo, reconhecer-se uma parte única e importante dentro de diversas partes únicas e importantes que constituem um todo. Esse entendimento pode ser resumido em um trecho do poema de Gregório de Matos: “O todo sem a parte não é todo, / A parte sem o todo não é parte, / Mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo.” Há a parte bonita e clara dessa tensão: mesmo sendo diferentes, somos todos irmãos em Cristo. Entretanto, há a parte complexa dessa tensão: em que medida nossas diferenças estão afetando nossa coletividade e vice-versa?
Texto base: 1 Coríntios 12:12-13
A morte de Jesus na cruz é mais do que uma entrega amorosa e salvífica, mais do que Sua obediência a Deus. É também um caminho a ser trilhado por Seus seguidores. Qualquer reflexão sobre quem somos e sobre como viver em tempos confusos e violentos deve passar pela cruz de Cristo e seu significado. O amor demonstrado no Calvário deveria ser a base da construção da nossa identidade e para nossas relações de amizade e de inimizade como os que estão ao nosso redor. Ou rejeitamos a cruz de Cristo e vivemos em busca de uma outra noção de justiça e verdade, ou a assumimos como centro de nossa existência e seguimos Jesus na direção dela.
Texto base: 1 Coríntios 2:2